XI

 

Leonardo, já dia adiantado, veio a despertar naquele capinzal, ator-

doado, zonzo; e, ao dar com Meneses ao lado, procurou acordá-lo. Foi

em vão; o velho estava morto. Um colapso cardíaco o tinha levado. Perce-

bendo que o amigo tinha morrido, Leonardo ergueu-se, tirou-lhe o chapéu

de perto da cabeça, pôs-lhe o rosto bem à mostra, com as suas brancas

barbas veneráveis, e começou a exclamar:

-- Sol! Sol glorioso das auroras e das ressurreições! Sol divino que

conténs todos nós, homens e plantas, bestas e gênios, insetos e vampiros,

lesmas e belezas! Sol que tudo fecundas e transformas! Vem tu -- ó Sol!

-- beijar esta augusta cabeça de imperador (apontava para Meneses hirto)

que vai para sempre mergulhar na treva e só te verá de novo, quando for

árvore, quando for arbusto, quando for pássaro e quando de novo voltar

a ser homem. Beija-o ainda mais uma vez! Beija-o, porque ele te amou e

muitas vezes voou para os espaços sidéreos, desejoso de ver o teu fulgor e

morrer por tê-lo visto.

Não dera fé, Leonardo, que alguns transeuntes haviam parado,

para ouvir as suas palavras e ver os seus estranhos trejeitos. Os mais curio-

sos se aproximaram e deram com aquele estranho e bizarro espetáculo

de um homem, que parecia louco ou bêbedo, a pronunciar coisas incom-

preensíveis e a gesticular, diante de um pobre velho morto. Chamaram a

polícia; e lá foi Leonardo, gesticulando e falando só, para a delegacia.

Meneses tomou o caminho do necrotério, após fotografias e outras pre-

cauções policiais.

O primeiro movimento do policial que recebeu Leonardo, foi removê-

lo incontinenti para o hospício ou lugar equivalente. Na verdade, o poeta

não dizia coisa com coisa; nem mesmo quem era, informava. Muitos o

conheciam de vista, mas, para essas pessoas, era simplesmente -- "o poe-

ta", Em chegando Praxedes, as coisas mudaram. Tinha ele o hábito de ir

de manhã às delegacias, ver se pegava algum biscate, alguma coisa. Indo,

naquele dia, topou com Leonardo lá e soube que um velho, que bebia

muito e costumava estar com ele, havia sido encontrado morto junto a Flo-

res e fora removido para a morgue. Viu logo que se tratava de Meneses.

Muito prestável, obsequioso de gênio, Praxedes, para quem a polícia não

tinha segredos, informou ao comissário quem era Leonardo e quem era

Meneses. A autoridade policial encarregou-o de prevenir os parentes e ami-

gos de ambos do que havia acontecido. Praxedes correu à casa de Joaquim

dos Anjos, para desobrigar-se da missão. Foi recebido pela mulher e a filha.

-- Quincas não está ai -- disse-lhe Dona Engrácia. -- Ele saiu cedo...

-- O senhor pode telefonar para a Repartição dos Correios -- lem-

brou Clara.

-- Lembrei-me disso, mas não sabia a seção.

A filha disse-lhe e o doutor Praxedes, muito diplomaticamente,

ergueu-se todo e, ao despedir-se das senhoras, desculpou-se:

-- Vossas Excelências hão de me perdoar. Não podia deixar de vir

até aqui. Sabia de dois amigos íntimos do doutor Meneses; um era o Senhor

Cassi, mas este está fora...

Clara espantou-se:

-- Está fora!

-- Ué, Clara! -- fez Dona Engrácia, -- Que espanto!

-- Não, porque ainda há dias "Seu" Meneses disse a papai que esti-

vera com ele -- fez Clara disfarçando.

-- Deve ser há algum tempo, minha senhora -- aventou Praxedes,

com toda a delicadeza de voz; -- porque há bem quinze dias que embarcou

para São Paulo, em Cascadura. Eu até me despedi dele...

Praxedes saía e Clara, logo que pôde, correu ao quarto para chorar.

Estava irremediavelmente perdida; ele a abandonava de vez. Como havia

de ser? Como havia de esconder a gravidez, que se ia mostrando aos pou-

cos? Que fariam dela os seus pais? Era atroz o seu destino!

Todas essas perguntas, ela formulava e não lhes dava resposta. Cassi

partira, fugira... Agora, é que percebia bem quem era o tal Cassi. O que

os outros diziam dele era a pura verdade. A inocência dela, a sua simplici-

dade de vida, a sua boa fé, e o seu ardor juvenil tinham-na completamente

cegado. Era mesmo o que diziam... Por que a escolhera? Porque era pobre

e, além de pobre, mulata. Seu desgraçado padrinho tinha razão... Fora

Cassi quem o matara.

Ele contava, já não se dirá com o apoio, mas com a indiferença de

todos pela sorte de uma pobre rapariga como ela. Devia ser assim, era a

regra. Nessa indiferença, nessa frouxidão de persegui-lo, de castigá-lo con-

venientemente, é que ele adquiria coragem para fazer o que fazia. Além

de tudo, era covarde. Não cedia ao impulso do seu desejo, de seu capricho,

por uma moça qualquer. Catava com cuidado as vítimas entre as pobres

raparigas que pouco ou nenhum mal lhe poderiam fazer, não só no que

toca à ação das autoridades, como da dos pais e responsáveis.

Estava ai o seu forte; o mais eram acessórios de modinhas, de toca-

tas de violão, de cartas, de suspiros -- todo um arsenal de simulação amo-

rosa, que ele, sem caráter e, por demais, cínico, sabia empregar, como

ninguém.

Que havia de ser dela, agora, desonrada, vexada diante de todos,

com aquela nódoa indelével na vida?

Sentia-se só, isolada, única na vida. Seus pais não a olhariam mais

como a olhavam; seus conhecidos, quando soubessem, escarneceriam dela;

e não haveria devasso por aí que a não perseguisse, na persuasão de que

quem faz um cesto, faz um cento. Exposta a tudo, desconsiderada por todos,

a sua vontade era de fugir, esconder-se. Mas, para onde? Com a sua inexpe-

riência, com a sua mocidade, com a sua pobreza, ela iria atirar-se à voraci-

dade sexual de uma porção de Cassis ou piores que ele, para acabar como

aquela pobre rapariga, a quem chamavam de Mme. Bacamarte, suja,

bebendo parati e roída por toda a sorte de moléstias vergonhosas.

Pensou em morrer; pensou em se matar; mas, por fim, chorou e

rogou a Nossa Senhora que lhe desse coragem. Se pudesse esconder?...

-- acudiu-lhe repentinamente este pensamento. Se pudesse "desfazê-lo"?

Seria um crime, havia perigo de sua vida; mas era bom tentar. Quem lhe

ensinaria o remédio? Correu o rol de suas poucas amigas; e só encontrou

uma: Dona Margarida.

Nisto, sua mãe gritou-lhe do fundo da casa:

-- Clara, estás dormindo? Olha que estão batendo na porta.

-- Já vou, mamãe.

Era o estafeta dos telégrafos, que trazia um despacho do pai, comu-

nicando que, devido a ter de fazer o enterro de Meneses, chegaria mais

tarde, mas viria jantar.

Ela e a mãe não esperaram; jantaram antes. Clara, muito preocu-

pada com o "remédio" que ia ver se Dona Margarida lhe arranjava; e

Dona Engrácia, aborrecida com a morte de Meneses.

-- Pobre Meneses! -- dizia ela. -- Morrer assim, no mato! Por que

ele não foi pra casa? Era bem velho, não era, Clara?

-- Devia ter mais de setenta anos.

-- Isto não quer dizer nada. Há quem dure mais... Você tem repa-

rado, Clara, que, de uns tempos para cá, está nos acontecendo uma porção

de coisas más?

-- Nem tantas! Duas só: a morte do padrinho e...

-- Você acha pouco e, ainda por cima, da forma que elas nos chegam!

Deus nos proteja! Tenho para mim que alguma está para nos acontecer".

-- Qual, mamãe! Tudo isto é doloroso, mas são fatos que se dão...

-- Felizmente, esse azar de Cassi se foi. Que vá pro diabo que o car-

regue!

Clara teve vontade de chorar; mas conteve-se. Estava resolvida: ama-

nhã, pediria um "abortivo" a Dona Margarida.

Joaquim dos Anjos chegou e narrou tudo o que acontecera com

Meneses e Leonardo, Aquele, por não ter ninguém que lhe fizesse o enter-

ro, ele o fizera; e Leonardo, logo que foi afastada a hipótese de crime e

ficou sabido o seu estado mental, entregaram-no à mulher. Ao chegar em

casa, acompanhado de Dona Castorina, foi que Flores caiu em si e teve

consciência perfeita do fim do amigo. Estava lúcido, bom; estava o verda-

deiro Leonardo, que chorou o falecimento do camarada, sem mescla de

delírio, pressentindo que, nele, havia aviso do seu próximo fim.

Engrácia ouviu a narração de Quincas e, ingenuamente, perguntou-lhe:

-- Esse Leonardo é mesmo homem de inteligência, Quincas?

-- É, Engrácia. Por quê?

-- Por que ele então bebe tanto?

-- Quem sabe lá? Vício, hábito, capricho da sua natureza, desgostos,

ninguém sabe! -- observou o marido.

-- Eu vejo tanto doutor por aí que não bebe.

-- Você pensa que todo doutor é inteligente, Engrácia?

-- Pensei.

Clara ficou admirada de que a opinião da mãe não fosse exata. Ela

também, muito popular e estreita de idéia, admitia que toda a espécie de

doutor fosse de sábios e inteligentes.

Joaquim, dizendo-se cansado, fora logo deitar-se; e, em seguida, a

sua mulher e filha.

Em breve, tudo era silêncio na casa e na rua. Clara não esperava

mais, com a janela semi-aberta, a visita do sedutor. Havia se fatigado de

aguardá-lo muitas noites seguidas; e, agora então, depois da informação

de Praxedes, tinha perdido toda a esperança. Ele fugira, e ela ficara com

o filho a gerar-se no ventre, para a sua vergonha e para tortura de seus

pais. Imediatamente, o seu pensamento se encaminhou para o "remédio"

que devia "desmanchá-lo", antes que lhe descobrissem a falta. Tinha

medo e tinha remorsos. Tinha medo de morrer e tinha remorsos de "assas-

sinar" assim, friamente, um inocente. Mas... era preciso. Pôs-se a exami-

nar o que lhe podia responder Dona Margarida. Pesou os prós e os con-

tras; analisou bem o caráter da amiga russa-alemã; e, na calma do quarto,

percebeu bem que não lhe daria nem indicaria o "remédio" criminoso.

Margarida era uma mulher séria, rigorosa de vontade, visceralmente honesta,

corajosa, e não haveria rogos nem choro que a fizessem contribuir para

um crime de qualquer natureza. Então, como havia de ser? Examinou a

lista das conhecidas, a ver se encontrava uma que lhe prestasse esse "servi-

ço"... Não encontrou, e também eram tão poucas... Se tivesse dinheiro,

com auxilio de Mme. Bacamarte... Acudiu-lhe então uma idéia. Ela aju-

dava Dona Margarida nos bordados e nas costuras, com o que já ganhava

algum dinheiro. Não tinha nada a haver da amiga; mas bem lhe podia

pedir emprestado, sob qualquer pretexto, uns vinte ou trinta mil-réis e

pagá-los com trabalho. Qual seria o pretexto? Pensou, combinou mentiras;

e, afinal, encontrou-o. Diria que era para comprar um presente destinado

à mãe, cujo aniversário natalício estava a chegar. Sorriu de contentamento,

quando organizou toda aquela mentiralhada. Julgava-se salva; mas, com

o que ela não contava, era com a sagacidade da alemã.

Dona Margarida era mulher alta, forte, carnuda, com uma grande

cabeça de traços enérgicos, olhos azuis e cabelos castanhos tirando para

louro. Toda a sua vida era marcada pelo heroísmo e pela bondade. Embora

nascida em outros climas e cercada de outra gente, o seu inconsciente mis-

ticismo humanitário, herança dos avós maternos, que andavam sempre às

voltas com a polícia dos czares, fê-la logo se identificar com a estranha

gente que aqui veio encontrar. Aprendeu-lhe a linguagem, com seus vícios

e idiotismos, tomou-lhe os hábitos, apreciou-lhe as comidas, mas sem per-

der nada da tenacidade, do esprit de suite, da decidida coragem da sua

origem. Gostava muito da família do carteiro; mas, no seu íntimo, julgava-

os dóceis demais, como que passivos, mal armados para a luta entre os

maus e contra as insídias da vida.

Quando Clara lhe falou no empréstimo ou adiantamento, ela se

espantou. Nunca a filha do "correio" lhe havia feito semelhante pedido

-- o que queria dizer aquilo? Não respondeu logo à solicitação e encarou

firmemente, com o seu olhar translúcido e, no momento, duro, a filha do

carteiro; e, por sua vez, indagou:

-- Para que você quer esse dinheiro, Clarinha?

A moça, não podendo suportar a mirada da alemã, abaixara os olhos;

e, com voz sumida, explicou o suposto destino que ia dar à quantia pedida.

Dona Margarida não acreditou; e, continuando com o olhar a sondar inqui-

sitorialmente Clara, observou com energia maternal:

-- Clara, você não fala a verdade; você está escondendo alguma coisa.

A moça quis negar; mas Dona Margarida, pressentindo que ela ocul-

tava alguma coisa de grave, cercou-a de perguntas; e Clara não teve outro

remédio senão confessar tudo. Ela chorou, mas Dona Margarida, sem se

deixar comover, durante toda a confissão, mais arrancada aos poucos do

que mesmo narrada espontaneamente, foi pensando como agir. Encheu-se,

Dona Margarida, de uma infinita pena daquela desgraçada rapariga, dos

seus pais, e mais profunda se tornava a pena, quando antevia o horrível

destino da pobre Clara; entretanto, não deu qualquer demonstração do

que lhe ia n'alma.

Num dado momento, sem dar-lhe a mínima explicação, Dona Marga-

rida ergueu-se e, dirigindo-se a Clara, ordenou imperiosamente:

-- Vamos falar à sua mãe.

A filha do carteiro, sem fazer a mínima objeção, obedeceu. Ao che-

gar à casa de Joaquim, Dona Engrácia estava no interior, inocentemente

entregue aos seus afazeres domésticos. Entretanto, Dona Margarida cha-

mou de parte a mãe de Clara e começou a narrar-lhe o que havia aconte-

cido com a filha. Dona Engrácia não se pôde conter. Logo que compreen-

deu a gravidade do fato, pôs-se a chorar copiosamente, a lastimar-se, a solu-

çar, dizendo entre um acesso de choro e outro:

-- Mas, Clara!... Clara, minha filha!... Meu Deus, meu Deus!

A filha aproximou-se chorando; ajoelhou-se, ajuntou as mãos, em

postura de oração, aos pés da mãe e, soluçando, repetiu:

-- "Me perdoe", mamãe! "Me perdoe", pelo amor de Deus!

Dona Margarida, de pé, nada dizia e olhava com profunda e desme-

dida tristeza, que não se adivinhava na sua calma e na segurança do seu

olhar, aquele quadro desolador do enxovalhamento de um pobre lar honesto.

Afinal, quando lhe pareceu que ambas estavam mais calmas, interveio:

-- Você sabe, Clara, onde mora a família desse sujeito?

Clara, ainda soluçando, respondeu:

-- Sei.

Dona Engrácia indagou:

-- Para quê?

Dona Margarida explicou que, antes de qualquer procedimento e

mesmo de comunicar o fato a "Seu" Joaquim, era conveniente entender-

se com a família de Cassi. Ela, Dona Margarida, iria imediatamente à casa

dele, acompanhada de Clara. Mãe e filha concordaram; e Clara vestiu-se.

A residência dos pais de Cassi ficava num subúrbio tido como ele-

gante, porque lá também há estas distinções. Certas estações são assim

consideradas, e certas partes de determinadas estações gozam, às vezes,

dessa consideração, embora em si não o sejam. O Méier, por exemplo,

em si mesmo não é tido como chique; mas a Boca do Mato é ou foi; Cas-

cadura não goza de grande reputação de fidalguia, nem de outra qualquer

prosápia distinta; mas Jacarepaguá, a que ele serve, desfruta da mais

subida consideração.

A casa da família do famoso violeiro não ficava nas ruas fronteiras

à gare da Central; mas, numa transversal, cuidada, limpa e calçada a para-

lelepípedos. Nos subúrbios, há disso: ao lado de uma rua, quase oculta

em seu cerrado matagal, topa-se uma catita, de ar urbano inteiramente.

Indaga-se por que tal via pública mereceu tantos cuidados da edilidade, e

os historiógrafos locais explicam: é porque nela, há anos, morou o depu-

tado tal ou o ministro sicrano ou o intendente fulano.

Tinha boa aparência a residência da família do Senhor Azevedo;

mas quem a observasse com cuidado, concluiria que a parte imponente

dela, a parte da cimalha, sacadas gradeadas e compoteiras ao alto, era

nova. De fato, quando o pai de Cassi a comprou, a casa era um simples e

modesto chalet, mas, com o tempo, e com ser sua vagarosa, mas segura,

prosperidade, pôde ir, também devagar, aumentando o imóvel, dando um

aspecto de boa burguesia remediada. Na frente, não era alto; o terreno,

porém, inclinava-se rapidamente para os fundos, de forma que, nessa parte,

havia um porão razoável, onde, ultimamente, habitava Cassi. O puxado,

na traseira da casa, também tinha porão, porém, com maus quartos, que

eram ocupados pelas galinhas do filho e por coisas velhas ou sem préstimo,

que a família refugava, sem querer pôr fora de todo.

Dona Margarida tocou a campainha com decisão e subiu a pequena

escada que dava acesso à casa. Disse à criada que desejava falar à dona

da casa. Dona Salustiana, que esperava tudo, menos aquela visita porta-

dora de semelhante mensagem, não tardou em mandar entrar as duas mulhe-

res. Ambas estavam bem vestidas e nada denunciava o que as trazia ali.

Só Clara tinha os olhos vermelhos de chorar, mas passava despercebido,

Chegou Dona Salustiana e cumprimentou-as com grandes mostras de si

mesma. Dona Margarida, sem hesitação, contou o que havia. A mãe de

Cassi, depois de ouvi-la, pensou um pouco e disse com ar um tanto irônico:

-- Que é que a senhora quer que eu faça?

Até ali, Clara não dissera palavra; e Dona Salustiana, mesmo antes

de saber que aquela moça era mais uma vítima da libidinagem do filho,

quase não a olhava; e, se o fazia, era com evidente desdém. A moça foi

notando isso e encheu-se de raiva, de rancor por aquela humilhação por

que passava, além de tudo que sofria e havia ainda de sofrer.

Ao ouvir a pergunta de Dona Salustiana, não se pôde conter e res-

pondeu como fora de si:

-- Que se case comigo.

Dona Salustiana ficou lívida; a intervenção da mulatinha a exaspe-

rou. Olhou-a cheia de malvadez e indignação, demorando o olhar proposi-

tadamente. Por fim, expectorou:

-- Que é que você diz, sua negra?

Dona Margarida, não dando tempo a que Clara repelisse o insulto,

imediatamente, erguendo a voz, falou com energia sobranceira:

-- Clara tem razão. O que ela pede é justo; e fique a senhora sabendo

que nós aqui estamos para pedir justiça e não para ouvir desaforos.

Dona Salustiana voltou-se para Dona Margarida e perguntou, pro-

nunciando, devagar, as palavras, como para se dar importância:

-- Quem é a senhora, para falar alto em minha casa?

Dona Margarida não se intimidou:

-- Sou eu mesma, minha senhora; que, quando se decide a fazer

uma coisa de justo, nada a atemoriza.

Foi calmamente que Dona Margarida falou; e, à vista dessa atitude,

Dona Salustiana resolveu mudar de tática. Gritou para as filhas:

-- Catarina! Irene! Venham cá que esta mulher está me insultando.

As moças acudiram e, contemplando o ar enérgico da teuto-eslava e

a figura lastimosa de Clara, compreenderam que Cassi estava no meio.

Acalmaram a mãe e indagaram do sucedido; Dona Margarida explicou;

mas, quando se falou em casamento de Cassi, Dona Salustiana prorrompeu:

-- Ora, vejam vocês, só! É possível? É possível admitir-se meu filho

casado com esta...

As filhas intervieram:

-- Que é isto, mamãe?

A velha continuou:

-- Casado com gente dessa laia... Qual!... Que diria meu avô, Lord

Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina -- que diria ele, se

visse tal vergonha? Qual!

Parou um pouco de falar; e, após instantes, aduziu:

-- Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de que abusaram delas...

É sempre a mesma cantiga... Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça,

as ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas...

Dona Margarida ia perguntar: "Que decide, então?" -- quando se

ouviram passos na escada. Era o dono da casa. Entrando e deparando-se-

lhe aquele quadro, suspendeu os passos e parou no meio da sala.

Olhou tudo e todos e perguntou:

-- Que há?

"Papai" -- ia dizendo uma das filhas; -- mas sabendo, por aí, quem

era aquele homem, Clara correu para ele, ajoelhou-se e implorou:

-- Tenha pena de mim, "Seu" Azevedo! Tenha pena de uma infeliz!

Seu filho me desgraçou!

O velho Azevedo descansou os embrulhos, levantou a moça, fê-la

sentar-se; e ele, sentando-se por sua vez, pôs-se a olhar, cheio de pena, o

dorido rosto da rapariga. Todos os olhos se fixaram nele; ninguém respira-

va. Afinal, Azevedo falou:

-- Minha filha, eu não te posso fazer nada. Não tenho nenhuma espé-

cie de autoridade sobre "ele"... Já o amaldiçoei... Demais, "ele" fugiu e

eu já esperava que essa fuga fosse para esconder mais alguma das suas ignó-

beis perversidades... Tu, minha filha, te ajoelhaste diante de mim ainda

agora. Era eu que devia ajoelhar-me diante de ti, para te pedir perdão por

ter dado vida a esse bandido -- que é o meu filho... Eu, como pai, não o

perdôo; mas peço que Deus me perdoe o crime de ser pai de tão horrível

homem... Minha filha, tem dó de mim, deste pobre velho, deste amargu-

rado pai, que há dez anos sofre as ignomínias que meu filho espalha por

aí, mais do que ele... Não te posso fazer nada... Perdoa-me, minha filha!

Cria teu filho e me procura se...

Não acabou a frase. A voz sumiu-se; ele descaiu o corpo sobre a

cadeira e os olhos se foram tornando inchados.

As filhas acudiram, a mulher também; e uma daquelas, chorando,

pediu à Clara e à Dona Margarida:

-- É favor, minhas senhoras; retirem-se, sim?

Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que tinha

presenciado e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção exata da sua

situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus

melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se conven-

cer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos no con-

ceito de todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho! Coitado!...

A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela

devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça

e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, cla-

ramente... O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres...

Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que

não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um

carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o

caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida,

para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que

se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e

moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a

covardia com que elas o admitiam...

Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha vindo. Dona Marga-

rida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha e da mãe.

Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara

e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento de

desespero:

-- Mamãe! Mamãe!

-- Que é minha filha?

-- Nós não somos nada nesta vida.

 

 

Todos os Santos (Rio de Janeiro), dezembro de 1921 -- janeiro de 1922.

 

F I M